Um relato sobre a luta em São Paulo:
Só não
entende o que está acontecendo nas ruas quem não foi para as ruas.
Ontem, em São Paulo, os pobres, os miseráveis, os excluídos tomaram as
ruas para protestar com as únicas armas de coerção que conhecem, a violência.
Não foi uma "minoria" de vândalos que atacou a prefeitura. Nem os punks
ou os integrantes do Black Bloc. Eles estavam lá e participaram, é
verdade, mas não foram eles que por pouco não colocaram a baixo o
símbolo do poder municipal, assim como não foram eles que destruíram o
portão do Palácio dos Bandeirantes.
Quem atacou a prefeitura,
desde o começo, foi o povo. Foi gente que está ali no centro todo dia
trabalhando, gente que mora nas ruas, gente, muita gente, que veio das
periferias participar dos protestos. Uma senhora, senhorinha mesmo, foi
simbólica nesse ponto, para mim. Ela chegou bem perto da porta da
prefeitura, onde o caos imperava após a saída da GCM, e passou a atirar
pedras contra o que restava de vidros. Algumas pessoas tentaram
contê-la. "Tia, sai daqui, a senhora vai morrer", diziam. E ela: "Me
deixa, eu tô com raiva, eu tô com muita raiva". Após uma negociação
entre ela e seus contentores, chegou-se a uma conclusão: "Eu saio, mas
me deixa jogar mais duas, eu to com muita raiva". E mais duas pedras
portuguesas voaram em direção às vidraças.
Toda a sorte de
violência que essa parcela da população sofre veio à tona ontem, por
mais que os representantes da classe média tenham feito o máximo de
esforço para conte-los. No meio do caos, estabeleceu-se, quase, uma luta
de classes e raças para definir qual a melhor estratégia de luta. De um
lado, jovens brancos e educados, em sua maioria, tentavam argumentar
que esse não era o caminho, que isso era o que a "mídia burguesa"
queria, que não havia "estofo ideológico" para isso. Do outro, jovens
pardos, negros, filhos de nordestinos, apenas ameaçavam. "Eu vou
quebrar, sai da minha frente, playboy, senão vai sobrar pra você".
Foi assim na porta lateral da prefeitura, onde os manifestantes - sim,
eles também são manifestantes - tentaram arrombar a porta fazendo dos
tubos metálicos de sinalização de trânsito uma aríete. Um rapaz,
loirinho, de cabelos cacheados, vestido de super-homem, tentava
convencer um bando de rapazes da periferia paulistana a não invadir a
prefeitura. "Pessoal, tem gente la dentro, alguém vai se machucar, para
com isso". Um rapaz, moreno, apenas com os olhos a mostra, explicou em
detalhes, o que lhe aconteceria: super-homem, sai daqui senão tu vai
virar a mulher maravilha". O super-homem, ciente estar diante da
Kriptonita, partiu.
A polícia, que abandonou a cidade, só
apareceu quando as lojas começaram a ser saqueadas. Quando eram apenas
as agências bancárias, donas de cofres impenetráveis por um bando de
"arruaceiros", não houve problema. Mas quando as lojas Marisa ou as
Americanas passaram a ser o alvo, um grupo de policiais surgiu. Prendeu
algumas pessoas, mas foi posto para correr pela multidão. A cidade, como
diziam, era deles. Dos pobres, dos miseráveis, dos nóia, dos meninos de
rua, dos jovens da periferia. Pela primeira vez, em muito tempo,
entraram nas Lojas Americanas sem serem perseguidos pelos olhares dos
seguranças. E muita gente só entrou para destruir. E muita gente
realizou o sonho de ter uma TV bacana ou um notebook.
Simplesmente criminalizar o que houve ontem no centro de São Paulo é
aumentar o fogo sob a panela de pressão da incrível desigualdade social
centenária deste país. E principalmente de São Paulo, a verdadeira
cidade partida. Não é possível que continue-se a acreditar que os
bandidos pardos, negros e periféricos são bandidos porque este é seu
DNA, porque não gostam de trabalhar, porque, enfim, são assim. Ontem, no
centro de São Paulo, essa massa mostrou que está cansada de ficar à
margem. Muito cansada. E não serão R$ 0,20, de fato, que aplacarão a
raiva.
O urubu bateu asa e a classe e a jovem média
paulistana, que o alimentou pensando em se tratar de um vistoso sabiá,
está assustada. Afinal de contas, os clamores de "Sem Vandalismo" que
entoaram durante as passeatas não fazem sentido para a massa daqueles
que realmente sofrem com o trânsito massacrante da cidade, com a polícia
assustadoramente violenta. Por não terem a raiva a lhes alimentar a
alma, os jovens que foram às ruas com cartazes dizendo "Saímos do
Facebook", não entenderam o poder da raiva. E com a raiva não se brinca.
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